1189 - 2021 : Commentarium in Apocalypsin 1184

Katherine Sirois

Commentarium in Apocalypsin



O desenvolvimento da criação artística inspirada pelas grandes tradições Gnósticas e esotéricas, tais como as da literatura apocalíptica, envolve um processo íntimo de interpretação de símbolos, visões e imagens arquetípicas. Este processo interpretativo busca e questiona, actualiza e dá novas formas aos fenómenos e ciclos cósmicos, forças terrestres, mistérios antigos, figuras universais, alegorias e sinais como os corpos celestiais e os eventos astronómicos, os quatro elementos, animais específicos, objectos e números, formas geométricas, mas sem alguma vez fixar ou impor significados definitivos. Como sismógrafos que capturam e expressam as frequências energéticas e o desassossego do seu tempo, Magda Delgado e Pedro Pascoinho manifestam um certo zeitgeist nesta constelação de trabalhos assombrados pelo Apocalipse do Lorvão, um manuscrito iluminado datado de 1189 que foi produzido por escribas monásticos perto de Coimbra e preservado actualmente nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo em Lisboa. Assim, Commentarium in Apocalypsin reúne uma colecção de expressões visuais e comentários contemporâneos sobre as ilustrações místicas e os enigmas que compõem o manuscrito português, uma cópia de um códice anterior feito por Beato de Liébana (século VIII) e que consiste num Comentário sobre O Apocalipse de João, o último livro da Bíblia, escrito na Ásia Menor, na ilha de Patmos, durante o século I d.C.

Este zeitgeist manifestado é caracterizado primeiramente por uma inquietação sombria, por uma angústia que é cristalizada na representação de um sol ofuscante, que cega, o do derrame, ou na imagem de um Sol Negro, estrela de desespero, melancolia e solidão perante a morte. Além do mais, este zeitgeist também revela a persistência até aos dias de hoje de um desejo de mudança, uma expectativa de que algo aconteça, uma destruição trágica, ainda que grandiosa, e o desenrolar de eventos cataclísmicos, mas épicos. Estes fenómenos espectaculares podem então dar lugar a uma grande renovação, à de uma prosperidade e abundância exultantes, ideais e divinas.

A abordagem profética do Apocalipse, que induz uma leitura literal do texto, coloca o problema irresolúvel do estatuto e do papel da profecia ao sublinhar a sua inerente ambivalência, ou seja, a tensão entre a faculdade da presciência e o poder da sugestão. Directa ou indirectamente influenciando o curso de eventos históricos, favorece mecanismos de delírio alucinatório em que o sujeito se entende como um protagonista, testemunha ou vítima de eventos actuais ou futuros. Motivado por um desejo semi-consciente do fim dos tempos – o fim de um tempo – a profecia é muitas vezes baseada na condenação da sociedade, considerada corrupta e degenerada (reino do Anticristo ou Idade do Ferro). Assim, o prognóstico faz parte da expectativa do regresso de uma era gloriosa, uma Era Dourada, de acordo com a tradição Hindu, ou o reino de Cristo, de acordo com a Igreja. Mas a procura de uma verdade oculta a desenrolar-se por detrás dos acontecimentos imobiliza fatalmente e aprisiona o leitor em significados pré-determinados que ele paradoxalmente ajuda a realizar. Esta dinâmica revela o poder da sugestão da profecia e, assim, a sua dimensão ideológica e política.

Ao invés, uma abordagem simbólica e interpretativa faz referência a uma escatologia pessoal ou colectiva cujo significado é contínua e dinamicamente construído pelo leitor, que se empenha então num trabalho de auto-análise. A demanda pela transformação interior e expansão da consciência atravessa as provações da revelação. No quadro de uma leitura simbólica ou alegórica do texto, as revelações podem ser experienciadas como um entendimento pessoal de mensagens enigmáticas. As visões são assim o acto de desvendar significados ao receber um acesso inesperado a conteúdos considerados trans-históricos e transculturais porque é provável que nos digam respeito individual ou colectivamente, qualquer que seja o contexto de recepção. Existe uma dimensão resolutamente transformativa e redentora na abordagem interpretativa de textos sagrados. Assim, o livro é literalmente aberto e as páginas estão também em branco à medida que as folheamos, usando a imaginação, a experiência e a sensibilidade enquanto continuamente renovamos, reinventamos e reactivamos a mensagem e a sua significação.

Quer seja olhado de forma profética ou simbólica, de forma alucinatória ou terapêutica, o Apocalipse e as grandes revelações encontram-se em linha com os nossos tempos. Dizem-nos respeito na nossa actualidade e é aqui que residem a força e a relevância deste encontro entre os desenhos de Pascoinho, negros sobre papel, e a tinta acrílica colorida de Delgado, sobre tela de linho cru. Fundindo-se com a peça musical imersiva que co-criaram, as complementaridades e oposições visuais dinâmicas em jogo são enfatizadas pelos sons e tonalidades sucessivamente sombrios e luminosos. A teia de padrões geométricos, proporções matemáticas e planos cromáticos vibrantes traz abertura e expansão às associações Warburgianas de símbolos, fragmentos e impressões mnemónicas. A justaposição contrastada de motivos figurativos escuros e melancólicos com pinturas abstractas luminescentes onde dominam as cores primárias emprega uma espécie de Axis Mundi que liga o céu e a terra, os domínios subterrâneos e celestiais, as contingências e necessidades, tormentos e aspirações, a génese e o fim dos tempos.



MAGDA DELGADO + PEDRO PASCOINHO
1189 - 2021 Commentarium in Apocalypsin
11.09.2021 – 15.01.2022
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Texto de exposição : Katherine Sirois
Tradução : Henrique Frederico
Fotografia de exposição : Bruno Lopes
Video de exposição : João Silva
Som : Registos de Magda Delgado. Masterização de Pedro Pascoinho e Carlos Pascoinho
Apoio à produção : Fernando Lopes 
Art handling / Montagem : Maria Torrada
Apoio : Compete 2020 / Portugal 2020