Studio 94 1102

Nuno Crespo

Studio 94



O trabalho de Filipe Cortez parte da experiência, sobretudo intensa entre os modernos e intensificada na nossa temporaneidade, que a história é caos, ela é irracional, imprevisível, incompreensível. Experiência esta que se enraiza não só na constatação da impossibilidade de finalidade histórica – negação de qualquer pretensão teleológica —, mas também que as ferramentas humanas de restituição do tempo, da memória, da história, estão sempre condenadas ao fracasso. Partimos de vestígios e marcas e não conseguimos senão produzir vestígios e marcas.

Ainda que esta exposição parta dessa constatação crítica, ela também se desenvolve a partir de uma ideia concreta (que é uma prática e uma dinâmica) do fazer da pintura. Um fazer assumido não como fórmula estabelecida, mas como campo onde o artista tenta física e tecnicamente encontrar uma forma eficiente de materializar a sua concepção crítica da história e memória humanas.

Isto não significa que o trabalho de Filipe Cortez seja sobre a memória, mas da sua prática pictórica — a qual, como veremos, é extremamente dinâmica e física — decorre uma relação particular com memórias de lugares, espaços e gestos. Trata-se de uma relação que se desenvolve a partir de uma atenção muito particular a vestígios, marcas, rastos, sinais. Não que este artista tenha qualquer tipo de ambição arqueológica e/ ou etnográfica, mas este processo passou a interessar-lhe quando por volta de 2015 em Nova Iorque se interessou pelos pedaços de tinta que começavam a despegar os pilares do metro. Para o artista, essas camadas de tinta estabeleciam não uma relação directa com a história daquela arquitectura, mas permitiam ter acesso a certas temporalidades (que não constituem verdadeiramente uma história), ou seja, fragmentos materiais com o potencial de funcionar como elementos provocadores de transformações temporais, pedaços de tinta arrancada a uma parede que potencialmente poderiam transtornar o tempo.

Este olhar para o espaço através das camadas de tinta que o compõem, e que funcionam como a sua pele, permitiu a este artista identificar as transições e mutações a que as diferentes arquitecturas estão submetidas. A tinta para além das suas funções decorativas e, em alguns casos, funcionais (isolam, impermeabilizam, etc. ) também contêm essa potência de servir enquanto sinais de acções passadas, uma espécie de história mascarada e escondida pela materialidade da tinta.

Deve salientar-se que o importante é perceber como é que não é através da contemplação das paredes pintadas que se constrói esta consciência, mas através do gesto activo, enérgico e bastante vital de arrancar essas camadas de tinta como se fossem a pele desses lugares. Experiência esta que Cortez repetiu, por exemplo, em projectos que desenvolveu em Taipei (2017) ou no Matadouro de São Roque na cidade do Porto (2016). É como se as camadas da matéria plástica da tinta conseguissem constituir-se como elementos centrais de uma arqueologia inesperada.

Esta arqueologia da história de um edifico, não é assumida literalmente pelo artista: o seu intuito não é didactico ou ilustrativo de uma narrativa, mas essas qualidades de vestígios, marcas e sinais são uma consequência da própria materialidade do trabalho com que tem vindo a trabalhar. Ou seja, a tinta plástica e o latex que o artista retira, manipula e arranca de superfícies, que podem ser as paredes de edifícios ou o chão do seu atelier, trazem vestígios, marcas e sinais de um outro tempo e de um outro lugar que não o da experiência que o espectador pode ter num determinado momento.

No caso desta exposição não há nenhuma cidade ou arquitectura como referências, mas é o próprio estúdio do artista que funciona como despoletador dessa capacidade arqueológica detida pela tinta e latex com que o artista utiliza. Mas neste caso é o próprio estúdio do artista que se constitui como lugar do acontecimento destas obras e são os acontecimentos desse espaço que transitam da esfera do acontecimento privado do fazer artístico, para o campo de uma obra plástica formalmente definida como pintura.

Para compreender a dinâmica interna da obra de Cortez, podemos pensar na ideia de acontecimento, porque mesmo existindo intencionalidade, preparação e alguma antecipação daquilo que as obras vão ser, a sua formulação final é inesperada porque se trata de um processo que possui uma gestualidade inerente em que até ao último momento – o gesto vital de arrancar a camada de latex pigmentada do chão ou de uma parede – o artista é guiado através de ponto de vista da cegueira. Como diz Derrida a propósito da sua identificação de todo o fazer do desenho como o fazer de um cego, mas uma cegueira que se transforma em visão e o cego em visionário e é, precisamente, essa cegueira que é a condição de todo o desenhar. Falar da cegueira é não só falar de um tema recorrente na história da arte, mas igualmente (e no que aqui mais interessa) desse lugar da visão que não se vê, desse ponto central invisível e irrepresentável que não se deixa ver. Derrida di-lo ao afirmar que existe em todo o ponto de vista um invisível, uma visão de nada, que é constituinte e que é condição de toda a visão (cf. Jacques Derrida, Memórias de  Cego, Ed. Gulbenkian, 2010).

No caso de Filipe Cortez para além de todas a problematização existente entre o fazer e o ver da pintura (ou do não-ver), existe nas obras que compõem esta exposição uma relação fundamental com o chão. Relação esta que determina o acontecer destas pinturas através de um processo que não é exclusivamenre compositivo, mas implica o desenvolvimento de um conjunto micro performances privadas que são o fenómeno originário destas pinturas.

Ainda que se tratem de universos totalmente distintos, podemos pensar nestas obras como sendo uma modalidade das action paiting de Jackson Pollock. Não que haja qualquer semelhança formal, visual ou conceptual com o artista norte-americano, mas o facto de ambos usarem a superfície do chão como lugar de trabalho e de sobre ela realizarem uma espécie de coreografia pictórica aleatória e improvisada e o facto de ambos partirem da geografia e espacialidade do seu estúdio como lugar do acontecimento das suas obras, aproxima-os e torna-os familiares. Proximidade esta que ajuda a compreender algumas das dinâmicas e energias latentes nas obras de Cortez.

Nos dois casos, as suas obras implicam acções que convocam uma dinâmica muscular e mais física da habitualmente presente na experiência contemplativa da pintura. Um dinamismo que não é propriamente performático no sentido da história da arte ocidental dado que as suas coreografias são exclusivamente privadas: pertencem ao espaço íntimo da sensibilidade do artista na solidão do seu estúdio. Neste sentido, não podemos propriamente falar em performance, mas numa dinâmica física privada que é condição da existência destas obras.

A atenção ao processo de construção da pintura não enquanto lugar de um esforço de figuração ou representação, como tenho vindo a sublinhar, mas como lugar construído a partir das acções de sobreposição e acumulação não anula, ou sequer transtorna, a sua existência enquanto pinturas, porque na formulação central das obras de Cortez (quer sejam manchas numa parede, objectos, ruínas de uma casa, etc.) está sempre em causa o assumir duma posição no campo da pintura.

Existe nesta exposição — como na generalidade das obras deste artista — um jogo feliz e desafiante entre a questão da pintura e a construção da memória e o desafio está em perceber de que modo esta relação não se desenvolve através da construção de um espelho mimético do mundo, mas pelo assumir da pintura como lugar onde diversos pedaços da fisionomia do mundo se vão juntando e condensando.



FILIPE CORTEZ
Studio 94
09.09 – 30.10.2021

Curadoria e texto : Nuno Crespo
Fotografia : Bruno Lopes
Video : João Silva
Tradução : Henrique Frederico
Apoio à produção : Diana Carvalho
Apoio : Compete2020 / Portugal 2020

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