PAGAN DAYS 1757

É com muito prazer que anunciamos PAGAN DAYS, a primeira individual de Pedro Valdez Cardoso na galeria. Em PAGAN days Pedro Valdez Cardoso reúne um conjunto de obras inéditas que evocam questões em torno dos conceitos de visibilidade, animismo e pós-racionalismo.
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Sara Magno

Porquê voltar a falar de bruxas ?


No percurso artístico de Pedro Valdez Cardoso é comum encontrarmos uma abordagem poética a assuntos que são fundamentalmente políticos - sejam eles associados a questões de género ou ao impacto de um regime colonial na sociedade portuguesa. A abordagem a estes assuntos, apesar de ser sempre feita de forma indirecta através de diferentes artifícios poéticos, tem partido sempre de um pressuposto racionalista. Contudo, no corpo de trabalho que agora vemos na galeria NO·NO, o artista transgride pela primeira vez esse pressuposto. Partindo do princípio que o racionalismo tem conduzido a humanidade a um corte radical com o equilíbrio ecológico do mundo, a motivação aqui é o de explorar esteticamente o domínio da irracionalidade como uma alternativa possível ao (re)encontro desse equilíbrio. 

Pagan Days aponta para uma forma de paganismo contemporâneo que abarca uma certa rebeldia, ou seja, inclui um discurso dissidente da ordem de ideias típicas da sociedade. As práticas pagãs ao longo do tempo têm vindo a ser associadas a espaços de transição situados entre a cidade e o campo, a terrenos baldios que, por serem propriedade de ninguém, permitem a realização de rituais mágicos não eclesiásticos. Rituais estes associados a algumas mulheres que, precisamente por não seguirem a típica ordem de ideias, são tidas como perversas e complacentes com o sobrenatural. A figura da bruxa epitomiza a rebeldia dessas mulheres e é uma das principais referências para a construção imagética do trabalho que se pode ver aqui exposto. 

Apesar dos muitos esforços dos movimentos feministas para desconstruir esta figura, ela continua a reaparecer através da sua representação no cinema mais mainstream, em particular na categoria de filmes de terror. É sabido que os filmes de terror reflectem os medos e as ansiedades mais irracionais da sociedade actual, resta saber qual é a raiz desse medo para que se possa inverter o sentido da diabolização e tornar a bruxa numa figura de empoderamento da mulher. É essa inversão que este Valdez Cardoso procura ao utilizar uma estética associada ao estereótipo da bruxa, mas também e essencialmente associada a lugares baldios que, por um lado, podem ser entendidos como espaços sem identidade, por outro, como espaços de transformação e devir. 

Estes são aspectos determinantes para a escultura com o título Ecdise, uma peça central nesta exposição que encontramos no piso subterrâneo, que remete para o altar ritualístico e para a conjugação de forças sobrenaturais. Cobrindo com a mesma pele de cobra preta elementos naturais e objetos do cotidiano, formando um só corpo, esta peça aponta no sentido do animismo - ou seja, a convicção de que não há uma separação entre o mundo físico e o espiritual, e rejeita o dualismo cartesiano que domina a lógica racional. Com esta abordagem, o artista torna-se parte de uma comunidade, maioritariamente constituída por mulheres, que propõe como alternativa um regresso ao paganismo e que se rebela contra uma ordem instituída - ordem esta que persiste à conta de asfixiar a relação dos humanos com a natureza: o capitalismo. 

Leituras recentes acerca da transição de uma sociedade pré-capitalista para a capitalista mostram que a figura da bruxa serviu precisamente para impedir as mulheres de praticarem medicina, forçando-as a submeterem-se ao controlo patriarcal da família nuclear, destruindo um conceito holístico de natureza que impunha limites à exploração do corpo feminino, retirando-lhes as suas terras, incutindo a fome através da mudança de pequenas comunidades agrícolas para culturas comerciais, e perseguindo-as por qualquer sinal que indicasse a prática de magia, ou seja, que envolvesse o domínio do irracional (Silvia Federicci, 2018). Pode concluir-se que, da mesma forma que o tráfico de escravos e a exterminação de populações indígenas no 'Novo Mundo' abriram o caminho para a ascensão do mundo capitalista moderno, também a “caça às bruxas” pode ver-se incluída num conjunto de processos sociais que tinham como principal objectivo o desempoderamento da mulher para a ascensão de uma nova forma de acumulação de capital. 

Os vários objectos distribuídos pelos dois pisos da galeria estabelecem um discurso entre si onde se revêm alguns dos estereótipos que contribuíram para incutir o medo de mulheres dissidentes. A peça Ângulo Morto, por exemplo, uma composição feita a partir de guardanapos de papel, pretende ser uma janela disruptiva que reflete uma ordem ou etiqueta pré-estabelecida. The end is the beginning, is the end, is the beginning, is the end… composta por um copo e uma varejeira real, simboliza a circularidade perpétua no ciclo da vida e morte, e a capacidade de regeneração e de reprodução muitas vezes associada à mulher. Ela aparece-nos aqui de alguma forma cativa, suspensa no tempo, dentro da redoma de vidro. Pareidolia, por seu lado, é o título de uma série de fotografias impressas em negativo invocando o reconhecimento instintivo, automático e inconsciente de uma cara em objectos inanimados, relembrando-nos da nossa necessidade de socialização e de criação comunidades de apoio e interdependência, que cada vez mais são um alvo na proliferação da privatização social e económica.

O desenho a carvão vegetal, Do not go gentle into the night, montado num canto em espelho, relembra-nos a dupla associação da mulher com a noite: por um lado, a ideia de um mundo paralelo dominado pelo desejo e pelo sonho, por outro, associado ao subconsciente, ao irracional e ao mundo das trevas. Nesta e noutras peças que fazem partem do universo sensorial desta exposição, encontramos uma estética associada aos filmes de terror e ao surrealismo: uma faca com dentes, um quadro que nos remete para as entranhas de um corpo vivo, ou a pele de cobra que convoca noções de mutabilidade e transformação. Tal como em toda a obra de Valdez Cardoso, estes são fragmentos retirados do tecido social e que, pela sua estranheza, nos confrontam com uma certa realidade.
 
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PAGAN DAYS
Pedro Valdez Cardoso
30.03 – 19.05.2023
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Texto : Sara Magno
Fotografia de exposição : Bruno Lopes 
Video : João Silva