BE KIND REWIND 1678

Rita Anuar

A riscar, resistir: notas para todos os tempos



“A minha mãe ensinou-me assim: quando atravessamos uma rua e o condutor do carro que vai a passar pára para nós atravessarmos, nunca agradeças. É obrigação do condutor parar. Os peões têm prioridade. É um direito. Um direito nunca se agradece.”

18/6/15
Adília Lopes


Estas notas iniciam-se com um poema de Adília Lopes, que termina com uma frase que podia palmilhar ruas.
Gestos aparentemente banais, como aquele descrito pela poeta, ensinado pela sua mãe, que se revestem de uma carga política invariavelmente disfarçada pela pressa e olhares cegos.

A ternura parece ter saído do léxico do nosso corpo, ela que, nestes dias, e olhando em retrospetiva, parece (re)afirmar a necessária fusão com a política. 
Be kind rewind leva-nos aí. A um encontro que nos faz refletir sobre o tempo, e em como à sua passagem, podemos mapear afinidades. Afinidade não é sinónimo de semelhança. É que afinidade também se pode jogar na diferença. O que se reveste de importância é que nos entreguemos ao tempo - uma atitude que consiste em ensaiar modalidades de acolher o outro, que se podem praticar na paragem do autocarro, ou a parar, para que alguém atravesse a estrada.

Ao olhar para o conjunto de obras que integram a exposição, dei-me conta da afinidade caligráfica e sonora partilhada entre as palavras arriscar, riscar e resistir. 
Arriscar que partilha qualquer coisa com a noção de resistir, e que se pode desdobrar numa outra acção, parindo outro verbo - riscar. A riscar no tempo. Os três verbos, nesta minha leitura, percorrem a exposição e traçam ligações entre as propostas dos artistas - umas pela via de uma afinidade técnica, outras pela distância na escolha de suportes -, mas que afinal, se riscam e arriscam umas nas outras em afinidades que não cessam. 

Mais que tudo, estas notas propõem que sigamos o trilho da criança, aquela que vai deixando um rasto, um risco de ternura atrás de si, riscando com os pés a superfície da terra para que o próximo, se escolher entregar-se a este tempo de que falo, lhe possa seguir as pegadas a___ riscando pisar uma inteligência profunda à qual gosto de chamar ternura.
 
A mulher que se coloca nua, deitada numa mesa, está pronta a ser comida. A ser servida. Esta mulher é um fetiche. Ela faz um convite: que lhe subtraiam a carne de modo que possa encaixar no padrão de beleza que nunca escolheu. Em 2002, Ana Pérez-Quiroga apresentou uma performance que a posteriori resultou na peça que podemos ver hoje na galeria, Odeio ser gorda, come-me por favor. Recuando e avançando no tempo, de há vinte anos para cá, qualquer coisa permanece – a necessidade de nós, as mulheres, continuarmos a resistir e a arriscar por construir um legado melhor para as que virão depois. Uma coisa que não podemos fazer sozinhas, sem a vivência da ternura e da afinidade a que me refiro. Que a casa, um tema emancipado no trabalho de Ana Pérez-Quiroga, possa ser espaço de criação, que ela possa significar hoje espaço de ruptura com o antigo, e que nela, as porcelanas se possam partir e desfazer consciências aprisionadas, servindo-lhes, com ternura e numa toalha requintada, um banquete livre e renovado.

Emancipação, resistência, é também tema que ocupa Ofélia, personagem feminina da tragédia de Shakespeare, Hamlet, que pode ser vista na obra de Magda Delgado (Pop-up-scroll-down Ophelia, 2014). Ofélia durante toda a peça do dramaturgo inglês é oprimida por figuras masculinas: Hamlet, que a despreza na maioria do tempo, dizendo-lhe coisas terríveis; o seu pai, Polónio, figura de opressão moral que lhe transmite deveres e preceitos com os quais uma jovem mulher deveria estar comprometida. 
Após Hamlet ter assassinado Polónio num acto de loucura, Ofélia tirou a única coisa sobre a qual tinha poder na sociedade do século XVI/XVII, onde às mulheres não era permitido, por exemplo, actuar no teatro, o que levava Shakespeare, e outros, a colocar homens a interpretar os papeis femininos. 

É famosa a imagem de Ofélia morta no lago onde escolheu tirar a vida, rodeada de nenúfares. 
No entanto, Magda Delgado, coloca a personagem fora do lugar que habitualmente lhe é reservado, um outro fetiche. No lugar da beleza perversa que rodeia o seu cadáver a flutuar no lago em baixo do salgueiro, Magda Delgado coloca Ofélia num vazio onde ela pode ser vista e não confundida com as flores dóceis e belas. Ofélia tem voz, mergulhando no negro profundo submerso, porventura, pelo desenho que Pedro Pascoinho nos apresenta na passagem da superfície às profundezas em Unstable (2019). 
Aqui o verbo altera ligeiramente, e resistir mistura-se com as águas riscadas que o artista nos apresenta, pintadas a óleo. A prova de resistência de Carlos Mensil (Estudo para prova de resistência I, 2022), já no piso inferior, colabora com as provas prestadas em cima. A resistência aqui parece ser um teste à matéria – a afinidade pela dissemelhança. A base da escultura apresentada por Mensil, sustenta qualquer coisa que nos leva a considerar as qualidades de peso e leveza e nos coloca a reflectir, devido ao título da peça - seguir o trilho da palavra aliada ao corpo da matéria envolta em ilusão. Uma coisa que é uma coisa, mas que parece ser outra, uma actividade que qualifica o universo das crianças – recordando os encantamentos com os quais nos quis confrontar no início deste percurso. 

Jogando, a criança a____risca ligações, rasuras, meridianos, para nós, um teste à capacidade de ainda se ser iludido por truques mágicos. Uma tensão, entre real e imaginado, que tal como em Mensil, nos é dada pela força da matéria, que surge também no trabalho de Gema Ruperez, Meridiano, 2018. A artista cria uma linha de tensão hipnotizante, um traço que se movimenta alimentado pela força do corpo e da gravidade.

Seguindo as coordenadas do espaço, Carlos Arteiro leva-nos por um trilho de esculturas de mármore (Testa, 2015). Os riscos azuis na pedra, que podiam ser rastos deixados por Pedro Pascoinho, no piso de cima, sublinham que todos estamos em contacto porque vivemos, não importa o ano, o media, a geografia que há sempre uma ligação dada a ver, sobretudo, se nos pusermos nos pés daquela criança que observa o mágico atentamente e que arrisca perder-se – ou a seguir os ensinamentos da mãe, ainda que no primeiro momento da escuta não os compreenda -, daí que seja necessário fazer rewind, para atravessar a estrada, anos mais tarde. 

O trilho de Arteiro conduz-nos à obra de Pablo Barreiro. Em Sem título, (Série Aproximação) (2019), Barreiro dá-nos a ver o negativo das coisas em moldes de gesso. A aproximação que nos oferece ao avesso das coisas, pode, porventura, ser equiparada ao vazio no qual Ofélia se emancipa, ainda no trabalho de Magda Delgado. Com uma obra que cruza o território da escultura com o do desenho, o trabalho de Barreiro, tal como o de Arteiro, Mensil e Ruperez, pode ser lido como um gesto de ternura aplicado à matéria e aos objectos. Um negativo tornado positivo. Afirmador. Ou a afinidade pela dissemelhança.

Nos trabalhos de Filipe Cortez e Keke Vilabelda, a pele não é a do corpo, mas a da tela, como sugere Cortez em Sem título, Pele da tela (2022). Os riscos de DRIFT (2016), de Keke Vilabelda, parecem coincidir com o que vimos até aqui – os verbos a riscar uns nos outros, assim como o seu trabalho Cracking Layers (2020), que se parece aproximar da pele de Filipe Cortez e da ideia de que a gravidade pode conciliar ternura com a força - tal como os nossos corpos. a nossa pele.
Ser vivo é arriscado. 

Os Canetas - meia pena e cruz no rabo (2015), mostra um corpo real, desenhado, fotografado, cópia, confundido, não sabemos bem. Nunca iremos saber tudo, mas vamos arriscando ir sabendo. 

Eu admito: não era do pai Natal que eu gostava. O que eu gostava era da ideia do pai Natal. 
No pai Natal nunca acreditei. Em magia sim.



BE KIND REWIND
Ana Pérez-Quiroga, Carlos Mensil, Carlos Arteiro, Filipe Cortez, Gema Rupérez, Magda Delgado, Keke Vilabelda, Pedro Pascoinho, Pablo Barreiro
24.11.2022 – 13.01.2023
_
Texto : Rita Anuar
Fotografia de exposição : Bruno Lopes 
Video de exposição : João Silva