MATÉRIA-AFECTO 1467

Susana Ventura

Matéria-Afecto


Por vezes, é necessária uma pausa, contemplar o que nos rodeia, despreocupadamente, para o espanto poder surgir e tomar conta de nós. No contexto da arte contemporânea, pode implicar ir contra-corrente ou retomar e explorar trajectos esquecidos, adormecidos, que não integrem as “grandes narrativas” (as outrora grandes narrativas, que falharam juntamente com o modernismo, estão a ser substituídas por outras, que nasceram das falhas das primeiras, estando, no entanto, cada vez mais, a tender para uma homogeneização e saturação que anulam as diferenças que reclamavam no seu início), nem se sujeitem ao Zeitgeist, que se constituem como outras vias de experimentação e que, muitas vezes, advêm de uma força que poderemos apelidar de interior, embora nesta estejam implicadas forças que gravitam num exterior de contornos informes, permeáveis, tumultuosos, como os que definem o nosso presente. Por vezes, é necessário destruir, também, a própria noção de presente e reinscrevermo-nos no tempo cíclico, no tempo do eterno retorno, nesse passado virtual, como Bergson ditou o tempo, mesmo que já seja aceite unanimemente que o nosso tempo já há muito que deixou de ser esse linear da visão teleológica do progresso humano, para ser entendido a partir de perspectivas multi-direccionais, como Braidotti tem vindo a defender. 

Certamente que será (quase) impossível escaparmos às linhas que tecem o presente, precisamente porque nos têm apanhado em teias outrora invisíveis, mas latentes, obrigando-nos a questionar e a reavaliar a nossa condição de existência, porquanto na origem da presente exposição inscreve-se uma certa utopia, que começa a sentir-se cada vez mais: como escapar à própria teleologia da arte contemporânea e encontrar (ou até mesmo inventar) novas linhas de experimentação (uma experimentação que seja livre, aérea, tumultuosa, sedutora, porque existe, também, leveza e dança - seguindo uma máxima nietzschiana - no nosso presente)?
Num primeiro plano - esse utópico — desejou pensar-se sobre a relação matéria-afecto, apropriando-nos da teoria da individuação e do princípio de modulação de Gilbert Simondon, considerando que existe uma transformação do material (qualquer um: rochas, aço, gesso, pigmentos, luz, objets trouvés, ramos, entre tantos outros), tal como este se encontra no seu estado bruto ou encontrado (o que poderá pressupor a existência de transformações anteriores, nomeadamente, decorrentes da acção do tempo ou dos elementos da natureza sobre o material, etc.) em matéria expressiva, sendo esta entendida como uma componente da obra de arte, intrínseca e irredutível à sua composição. Implícita está uma transdução dupla, entre o material e a sua transformação em matéria expressiva perante a reacção a outras componentes, e entre o material e o artista, que ocorre, preferencialmente, num plano onde todas as componentes são compreendidas (ou melhor, sentidas) como forças. A troca energética, que flui entre o artista e o material, não é linear (e, muitas vezes, ocorre num momento de abandono da consciência, conduzindo o artista a uma experimentação imprevisível), como é intensificada pela experiência do momento presente em que os limites dos afectos são questionados (esta é, ainda, a principal forma pela qual conhecemos o mundo - a forma como somos afectados pelos fenómenos). E tanto o artista, quanto o material inerte (antes da sua passagem a matéria expressiva) entrelaçam-se nesta troca incessante (que já não é, porém, a luta clássica entre artista e material, instrumentos ou técnicas, embora todos estes possam concentrar e libertar forças que actuam no plano de composição final da obra de arte). 
No modelo de modulação de Gilbert Simondon (oposto ao modelo hilemórfico tradicional), não existe separação entre forma e matéria, pelo contrário, ambas formam-se e são formadas simultânea e continuamente no plano de forças que se gera entre ambas. Para Simondon, o tijolo não resulta da imposição de uma forma sobre um material inerte, mas sim das qualidades e potencialidades particulares da argila que lhe conferem uma estrutura moldável. É este potencial de deformações e variação no interior da argila que permite a sua transformação, enquanto o molde, que determina a forma, é um contorno que vai delimitando e (a)condicionando essas potencialidades, através das forças que ele próprio irradia. A individuação não é um modelo de moldagem, mas sim de modulação (e Simondon insiste nesta distinção), na medida em que o primeiro é estático e o segundo é um processo dinâmico contínuo. Considerando ainda a teoria da individuação de Simondon, as potencialidades pré-individuais do barro sofrem uma individuação particular, cujos limites são determinados pelo molde. A teoria complexifica-se, necessariamente, quando passamos para todos os domínios de individuação, porque tanto a forma, como a matéria activam, para além daquelas das substâncias, forças muito distintas, algumas das quais resultantes de relações de poder exteriores… O que nos leva a sair, de imediato, do plano utópico predefinido, com uma advertência, porém: continuaremos num plano onde forma e matéria formam um bloco indecomponível e se compõem mutuamente. 

A matéria concentra, em si, afectos (não lhe são exteriores, nem imputados). O afecto é, aqui, compreendido como um composto sensível libertado pelo processo de individuação da matéria (e não como pertencente a um sujeito), que resulta na capacidade desta de criar diferentes estados como atracção, empatia, horror, repulsa (entre outros), independentes de uma emoção subjectiva. Retomando o modelo de modulação de Simondon, pensamos nas diferentes potências da matéria, que se encontra em devir constante, como afectos intrínsecos à matéria (tendo em consideração que esta resulta de um duplo processo de individuação, como definimos).
As obras seleccionadas de Keke Vilabelda, Daniela Ventura Ângelo, Nora Aurrekoetxea, Jong Oh e Pilar Mackenna exploram, de formas muito distintas, esta relação entre matéria e afecto, partindo de uma experimentação sobre os materiais, sobre as próprias substâncias de que são compostos e as forças que concentram, as quais encontram, na passagem a matéria expressiva, uma composição distinta, desenhando um novo campo energético (ou vibração imanente), libertado pelos gestos, pelas linhas, pelas cores. Este é, ainda, intensificado pelo encontro entre as diferentes obras, produzindo diferentes reverberações e ressonâncias, que aumentam sempre que nos situamos no cruzamento de forças opostas (como por exemplo, entre a força da gravidade e a suspensão, entre peso e leveza) ou entre-forças que actuam por continuidade (entre matérias que se encontram na mesma cadeia de transformação, como por exemplo, do mineral). Simultaneamente, as ressonâncias, que surgem entre formas nalguns desses encontros, reenviam as forças para a matéria, nesse sentido que ambas - forma e matéria - se constroem mutuamente. 

Na obra de Keke Vilabelda, encontramos o afecto que é, também, a memória que a matéria preserva (sempre a memória que se desdobra em duas, a que permanece virtual e a que se actualiza), que revela o tempo e desafia a morte. As pinturas expostas resultam de uma manipulação das diferentes forças em acção na pintura, de velocidade, evaporação, rarefacção, erosão e cristalização de pigmentos coloridos. A força maior será a do próprio tempo que as pinturas libertam, dos estratos revelados, às áreas ambíguas onde perdemos o olhar e nos fazemos atenção. São pinturas-minerais. 
A fotografia tem outra materialidade, mas, expressa, à semelhança das pinturas-minerais de Vilabelda, também ela a força do tempo. O tempo numa fotografia é, sempre, passado. Daniela Ângelo acentua, ainda mais, este tempo, captando objectos e seres desprovidos de vida orgânica, mas que concentram essa outra vida que nasce da matéria e dos seus afectos, sobretudo através da manipulação de outra das matérias de que a fotografia se faz: a luz. Uma luz intensa, que reverbera no espaço, trazendo da morte aqueles seres e objectos. E com estes o desejo e a paixão. 
As esculturas de Nora Aurrekoetxea remetem, directamente, para os afectos de um corpo ausente, que a obra não representa, mas contém em potência e que é, em si mesmo, um corpo afectuoso, criando-se uma indiscernibilidade entre escultura-corpo-afecto, apresentando graus ou estágios complexos de fragmentação, tensão, protecção, vaidade, fluidez, leveza, entre outros, que as suas matérias vão compondo, nomeadamente, através desse processo de individuação sempre aberto no confronto com o corpo dos espectadores. As linhas fazem-se gestos, por vezes, mais violentos, por outras, mais esbeltos e aéreos. Os volumes e os processos materiais, que os concebem, fazem-se membros de corpos. Corpo pesados, corpos românticos, corpos que carregam a sua própria fatalidade, o seu destino. 
As linhas fazem-se gestos e movimentos, igualmente, nas esculturas singelas e nos desenhos-escultura de Jong Oh. Para além da intermutabilidade de qualidades e matérias expressivas entre os campos da escultura e do desenho, as obras expostas relacionam-se com arquétipos arquitectónicos - como a coluna e o arco - que mantêm uma ligação directa ao corpo, utilizando forças elementares, como a da gravidade, a do peso e a suspensão, e matérias voláteis e flutuantes como a luz e a sombra. O próprio artista explica que as suas line sculptures, por exemplo, resultam de um diálogo entre si e o espaço. Pensamos, de imediato, no espaço como uma caixa de ressonância, atravessado por linhas, massas de ar, luz e sombra, que se cristalizam nas esculturas de Jong Oh, revelando esses afectos do espaço em si. Particularmente, nos desenhos-escultura, ou em inglês folding drawings, assistimos a uma espécie de dança, em que as linhas (do desenho) se entrelaçam, afastam, soltam-se dos planos (da escultura) e vice-versa, remetendo-nos, igualmente, para os afectos ou forças invisíveis do espaço. E embora estejamos a olhar para um desenho-escultura, este coloca o espaço, em nosso redor, em movimento e o nosso corpo em espaço-movimento, torção, dobra, espelho, ilusão de si mesmo. 
Pilar McKenna compreende as relações com os diferentes materiais (tanto naturais, como de uso industrial) como parte de um grande ecossistema, onde as ligações entre seres humanos, natureza, animais, objectos, se inscrevem, pelo que a sua prática evolui a partir da experimentação e da manipulação dos materiais, englobando tanto o conhecimento sobre as propriedades físicas e construtivas destes, como processos intuitivos de associação e transformação, em que ambos se constituem como formas de perscrutação e compreensão do Outro. Para esta exposição, a artista recupera esculturas concebidas a partir de pedaços de troncos e ramos, que recolheu no Chile (a sua terra natal), cujas formas encontradas resultaram de intervenções de animais (como é o caso da mosca-da-madeira chilena que cria torções nos ramos) ou da acção de forças violentas (como incêndios florestais), nos quais interveio delicadamente, numa escuta precisa e intensa da forma-matéria encontrada. A este conjunto de esculturas, que carrega consigo a geografia de um lugar afectivo (mas cuja acção artística permite extrair das afecções, os afectos, como diria Deleuze), a artista junta esculturas novas, concebidas a partir de materiais e objectos encontrados na cidade do Porto, onde reside actualmente. A sua instalação expressa esse vitalismo inerente à matéria, reafirmando que, por mais complexa e heterogénea, é a matéria que tudo constrói, que tudo liga, desencadeando, por último, em cada pessoa, os seus próprios afectos (nos quais se inclui a empatia). 
Sejamos nós, também, a decidir o que queremos tomar em nós do presente.





MATTER - AFFECT
Daniela Ângelo, Jong Oh, Keke Vilabelda, Nora Aurrekoetxea, Pilar Mackenna
08.06 — 29.07.2022
_
Curadoria : Susana Ventura 
Fotografia de exposição : Bruno Lopes 
Video de exposição : João Silva 
Grafismo : NO·NO 
Tradução : NO·NO 
Apoio à Produção : Jesus Crespo 
Em colaboração com (e especial agradecimento a) : Galeria Sabrina Amrani, Galeria Juan Silió